quinta-feira, 9 de outubro de 2008

CERCO DA PRIMAVERA

CERCO DA PRIMAVERA (Prêmio Alphonsus de Guimaraens – 1958)

Desde seu livro de estréia – Cerco da Primavera – publicado em 1957, quando era ainda uma jovem universitária, Marly de Oliveira surpreendeu a leitores e críticos com uma obra que nasceu pronta, definitiva, “como Atenas, da cabeça de Júpiter”, na expressão de Alceu de Amoroso Lima, e que mereceu o Prêmio Alphonsus de Guimarães, do Instituto Nacional do Livro. Ali já estão presentes os temas essenciais do poeta, reiterados nos 16 livros publicados desde então, e resumidos numa permanente indagação filosófica sobre os mistérios e a fragilidade da vida.

- Primeiro verso do primeiro poema do primeiro livro
(“Eu. E diante da vida…”)

- Livro de uma jovem poeta perplexa ante os mistérios do mundo, acreditando de certo modo no poder da poesia como chave para abrir esses mistérios. O poeta percebe, em seguida, a insuficiência da arte para apreender e compreender o mundo, a vida. O máximo a que a poesia pode aspirar é refletir, em termos estéticos, esta busca permanente e essa consequente perplexidade diante do mistério insondável.

- Mas, essa incapacidade para entender o mundo não paralisa porém o tempo, em seu fluir incessante.

- Um breve levantamento vocabular do Cerco da Primavera testemunha essa fugacidade das coisas e da vida:
• um esbatido de pássaro;
• no redondo das horas;
• pássaros calmados;
• rosa, flor, aceno;
• fogo de lírios;
• silêncios desvelados;
• um rio de claridades, tempo, luzes, auroras, noites, crepúsculos, água, vento, manhãs puras, horizonte, vagos espelhos, trêmulo instante, sonho, nuvens, distantes mares, alto vôo, sombra, cristal da vida, cirandas de ventos e anjos, etc.

- Esse fluir incessante vai desembocar naturalmente no não-ser, na morte.

- O amor e a morte são os temas básicos do Cerco da Primavera. E é a própria autora que confessa: “Ainda adolescente, o grande terror era o da morte, só compensado pela ideia do amor. Amor e morte são os temas fundamentais desse livro, que pretende por medo da dissolução, uma afirmação da minha identidade, a sensação penosa de uma solução que ainda é desafio e orgulho.”
Lauro Moreira
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ALGUNS POEMAS DO CERCO DA PRIMAVERA:
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INSCRIÇÃO
Eu. E diante da vida,
com meu azul intacto,
Um esbatido de pássaros.
Alto no vento. Grato.

A sensação de ser
só, uno, um, completo.
No redondo das horas,
pleno, lúcido, cego.

O que de mim salvando
se vai a cada instante,
nesse morrer diário
e sucessivo: um canto.


EPIGRAMA
Bom é ser árvore, vento:
sua grandeza inconsciente.
E não pensar, não temer.
Ser, apenas. Altamente.

Permanecer uno e sempre
só e alheio à própria sorte.
Com o mesmo rosto tranquilo
diante da vida e da morte.

RETRATO
Deixei em vagos espelhos
a face múltipla e vária,
mas a que ninguém conhece
essa é a face necessária.

Escuto quando me falam,
de alma longe e rosto liso,
e os lábios vão sustentando
indiferente sorriso.

A força heróica do sonho
me empurra a distantes mares,
e estou sempre navegando
por caminhos singulares.

Inquiri o mundo, as nuvens
o que existe e não existe,
mas, por detrás das mudanças,
permaneço a mesma, e triste.

TRÊS POEMAS DE OUTUBRO
1. Lume, teu rosto,
agudo e novo
como um descobrimento,
E tuas mãos silêncio,
como noturno fruto
pendido sobre mim.
Eu em ti,
com meus arroubos de ave,
mas sem querer partir.

2. Quando às vezes te assalto
com meu querer noturno,
ébrio de mãos e beijos,
não é alguém que busca
o limiar de um lábio
ou vinho, para a mesa.
Alguém de copo em mão,
no umbral da tua porta,
o infinito suposto
quer, para além do umbral
e para além da porta.

3. No céu inteiro penso,
amplo de vôos límpidos
e bicos musicais,
torso desnudo e azul
como o de um pombo triste,
nuvens como asas doces,
de um corpo altivo e elástico.
No espaço em que naufrago,
onde as horas não querem
portais ou tetos, penso,
quando te chamo pássaro.

MORTE
E lutarás comigo,
fresca ainda de vento,
presa às luzes do dia
pelos cabelos últimos.
Quebrantarás meus olhos,
sei.
Apagrás as mãos
para a ternura,
para o amor,
também sei.
E alçarás a distância
entre mim e quem amo,
imperdoável.
E me terás por fim.
Mas se entrega, dura.
Mais que difícil,
fria.

ELEGIA
Teu rosto é o íntimo da hora
mais solitária e perdida,
que surge como o afastar-se
de ramos, brando, na noite.
Não choro tua partida.

Não choro tua viagem
imprevista e sem aviso.
Mas o ter chegado tarde
para o fechar-se da flor
noturna do teu sorriso.

O não saber que paisagens
enchem teus olhos de agora,
e este intervalo na vida,
esta tua larga, triste,
definitiva demora.

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