quinta-feira, 9 de outubro de 2008

EXPLICAÇÃO DE NARCISO

EXPLICAÇÃO DE NARCISO – (1960)

Em seu segundo livro, Explicação de Narciso, o poeta se vale do mito grego – como de resto o fará em vários outros momentos de sua obra, sobretudo em Invocação de Orpheu, onde se dá a “iminência do encontro frustrado” – para refletir sobre o tema da beleza pura, completa em si mesma.

- Narciso, no entanto, é também o ser que caminha inelutavelmente para a solidão e para a morte.

- Símbolo da beleza, era filho do deus Cefiso (rio) e da Ninfa Liríope. No dia de seu nascimento, o adivinho Tirésias vaticinou que ele teria uma vida longa, desde que jamais contemplasse a própria imagem.

- O enfoque dado por Marly de Oliveira ao mito do Narciso, difere dos enfoques de poetas anteriores, como Ovidio, Valléry e Mallarmé, mais presos à versão tradicional da mitologia, ou seja, Narciso um dia se vendo refletido no espelho das águas, apaixona-se por si mesmo, e afoga-se na fonte, à beira da qual nasce a flor com seu nome.
Para Marly, Narciso ao se mirar no espelho das águas se vê para além da sua imagem: seria o Eterno, a Beleza? E a isso, diz o poeta, ninguém subsiste. Em uma visão religiosa, Deus é o Transcendente, o Para lá desta ordem de coisas. Segundo a frase da Bíblia, não se pode ver a Deus sem morrer. Lauro Moreira

ALGUNS POEMAS DE EXPLICAÇÃO DE NARCISO:

1. Que outros continuem vendo
teu esgarçado sorriso
sobre tuas próprias ondas
feitas fonte e paraíso.
Dizem que o cristal das águas
era teu rosto prateado,
e julgam que teu segredo
já foi todo desvendado.
Mas eu sei que outros desígnios
te dobraram sobre ti,
e obedeceste a uma lei
que não tem princípio ou fim.
Para além de tua imagem
E de ti mesmo, te viste.
Eras o eterno, a beleza?
E a isso ninguém subsiste.

2. Eu pastava meus rebanhos
Pelas campinas sem fim.
Mas me chamaram Narciso,
teria que ser assim.
Por mais que houvesse caminhos,
todos trariam a mim.
A fonte de águas veladas,
o cerco e assombro do dia,
e as águas me refletindo
no seu dorso cristalino,
mesmo que não existissem
não fugira ao meu destino.
E mesmo que não pastasse
pelos campos minha grei.
Mesmo que fosse adivinho,
profeta, mendigo ou rei,

pois aprouve aos deuses que eu
no nome trouxesse a Lei.


3. Diante de mim, nestas águas
quem sou, que não me preciso?
Ai, que sonho tão temível
assim me turva o sorriso?
Que amor, que presságio cingem
a cabeça de Narciso?
A que secretos poderes
se confia minha sorte,
se o que frágil vejo na água,
em mim se torna mais forte,
e onde sei que está a vida
encontram todos a morte?
Entre mistérios tão vastos
que breve instante que somos!
De repente descobrimos
que estamos. Mas onde? e como?
Por mais que nós nos dobremos
sobre nós e o que já fomos,
à inútil pergunta nossa
somente o eco responde.
E diante outra vez de nós
estamos. Há quem nos sonde?
E de que espaço ou que tempo
nosso eco responde? de onde?

9. Os duendes luminosos e feridos
chegaram levemente com seu jeito
de renas silenciosas cor da tarde
que morre pouco a pouco no meu peito.
E tudo tudo se confina e diz-me
que estou só como nunca assim brilhante
em uníssona voz que mudo escuto
à margem dessa morte e desse instante.
Eu me busquei essa aventura triste
de estar comigo e com meu pensamento,
essa forma de amor que vai matando
o mundo para mim e em mim o tempo.
De ser como o coral ou como o mármore
que se faz de esperança e eternamente,
e de deixar que o coração se vare
por uma luz safírica de duendes.

10. Quem soube das estepes gloriosas
ou dos campos vazios que sofreu
em seu silêncio e seu martírio o amor,
esse ouropel, esse húmus, essa morte? Eu.
Há quem enfrente um céu flechado e mudo
como um trevo, uma palma que se dá
à miragem deserta e solitária
das heras e dos muros e crepúsculos? Há.
És a ninfa tardia das moradas
onde por sempre a sombra começou
e o silêncio jogou raízes de água
no coração das pedras e dos musgos? Sou.
Companheira noturna destas grutas
onde o sumo do tempo se fez jade,
nas luzes que o futuro vai forjando
há de ter fim as sombras destas tardes? Há-de?

19. Consomem-se os lauréis da minha vida
em quatro dias, quatro eternidades
memoráveis de esperas e de lutas
contra mim mesmo e o tempo que me cabe
com seu noturno archote e muda flama,
e este silêncio, que é de amor ainda,
rastejando seus males e o infortúnio
contra um redor de festas e vindimas.
Um céu pressago sobre mim desaba
seu manto esquivo azul com mãos tão frias
que o coração e tudo em mim naufraga
avaramente, e logo se aniquila,
como a sombra que em sombra se desata.
E estou tão só que a solidão cintila.

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