terça-feira, 14 de outubro de 2008

INVOCAÇÃO DE ORPHEU / ALIANÇA

INVOCAÇÃO DE ORPHEU/ALIANÇA

Em 1980 é publicado Invocação de Orpheu, sobre o qual já nos referimos, e logo em seguida, Aliança. Esta última é uma obra repleta de homenagens a figuras admiradas pela autora. Segundo Antonio Houaiss, “alguns dos mais belos tributos críticos, lúcidos, válidos, perdurantes, afetivos a poetas seus cognatos de alma, como a Drummond, a Jorge Luís Borges, a Murilo Mendes, a Cecília, a Manuel Bandeira, a Clarice, a São Francisco”. E, acrescento eu, a suas filhas amadas, Mônica e Patrícia.

Alguns poemas:

A Jorge Luís Borges

XI. Já cego e um pouco surdo o conhecemos,
falando baixo e pausado.
Era uma noite diferente,
acompanhada da leitura de Whitman,
de um poema em anglo-saxão,
de considerações sobre Euclides
e seus Sertões.

Impregnado de um invisível deus,
divinizado pela aceitação
do mais inaceitável para quem sempre conviveu
com os livros: a cegueira,
que o faz vacilar entre a informação de uma voz
e o rosto que a acompanharia,
o secreto desejo de recobrar a cor
de um poente em seus passeios
pela Recoleta
ou num subúrbio qualquer de Buenos Aires.

A Carlos Drummond de Andrade

IX. Poeta do finito e do infinito,
tempo presente e ausente e do futuro,
de tudo um pouco te ficou na austera
concepção de vida, ó demiurgo
da memória, do sonho, do sarcasmo,
da violência contida e sem triunfo,
da doçura do hóspede secreto
de si mesmo
rebentando-se em dor, amor, soluço;
que te dizer no dia abençoado,
eu que nem sei de mim, eu que me sei
agora remetida à tua lição
de dançarino aflito sobre os fios
finos, tênues e tensos da canção?

O pórtico arruinou-se de meu sonho,
a tristeza infantil revigorou-se:
meu canto não celebra o que interpreta
na inspeção, de que falas, dolorosa
do deserto.
Já não saúdo ao jeito natural
de quem sabia adormecer crianças.
O sino toca e não percebo: falta
a malícia das coisas, a aliança
secreta com o que existe.
Ó meu jovem poeta,
não te consome o tempo irreverente:
és a mina de tudo o que ainda anima
a aceitação difícil do mistério,
a solércia dos mitos que o amor
vai criando de forma insidiosa.

Atento te debruças sobre a vida,
assistes impassível ao desmonte
e ao recriar-se, franco, cada dia,
de um céu mofino, um tempo de pesares.

Mas de tal modo, poeta,
extraordinária
é a tua percepção do que se vive,
que nem te rapta o sonho,
nem te perde a obscura realidade.
Pairas, tranquilo, sobre as coisas,
herdeiro penseroso do milagre.

(Ausência de Mônica)

XII. Nesta casa vazia recomponho teu rosto:
o dia não desculpa
a forma escura e fria,
uma floresta feita
só de silêncio e ausência.
Falta o ofício de te ver
despertar lentamente,
violenta aurora de meu sangue,
aprendiz do que sonha o meu amor,
o curto espaço que nos separa
esteriliza o suspiro mais radiante,
a forma comovida
de um mundo sem sentido.
São prendas que algum dia hás de entender:
o amor, que é também cólera
e aço e cobre e ouro irreversível,
a saudade daquilo que se tem (ou teve),
do que não se comanda com a vontade.

Eu te confio o enigma de ser
na treva, o dia claro e sem presságio,
na luz, o espaço daquilo que se perde,
entrelaçados ambos
no incerto jogo vivo,
motor do que se pensa ou se advinha.

Eu te anuncio
o caprichoso, vário, imerecido desconcerto,
o vão recolhimento ao catre de lembranças
e o despertar um dia para aquilo
que milagrosamente nos circunda
e de tão perto nem vemos:
o difícil presente inacessível.

O que tenho te lego:
a paixão do intelecto
e o respeito daquilo que nos move tão de dentro
que não se entende,
a veia casta de uma secreta ligação com o mundo,
o pessimismo sempre discutível,
mas sobretudo o amor,
que dispensa até mesmo o entendimento.
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