quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A VIDA NATURAL

A VIDA NATURAL – (1967)

O livro seguinte, A Vida Natural foi publicado também em 1967, juntamente com O Sangue na Veia. Ambos evidenciam aquilo que Antonio Houaiss tão bem chamou de “sentidos sentidos”. Diz ele: “E tudo em contato de coisas velhas e revelhas, a terra, o campo, as ervas, as águas, águas claras, cristalinas, vôos e sangue e sol e fogo e frio e fome, fome de vida, fome de amor, fome de vida”.

As reflexões de A Vida Natural nascem a partir de uma viagem de Marly a Brasília, mais especificamente a Goiás, e a algumas pequenas cidades e fazendas da região. O contato quase inaugural com a natureza em seu estado bruto, para ela que passara os seus jovens anos até então entre livros, Rio e Roma, teve o impacto de uma revelação. Foi uma constatação fascinada com árvores crescendo, bichos nascendo, rios correndo e “crepúsculos lentos e arroxeados”… Mas a dúvida, o questionamento sobre a perenidade das coisas e sobre nosso estar no mundo, juntos e diversos desta mesma natureza, estão igualmente presentes nesses poemas, cujo bucolismo amoroso nos faz pensar em um Bernadim Ribeiro, e cuja estrutura formal nos remete a Dante e suas sextinas, às canções provençais, a Petrarca, a Guido Cavalcanti. Lauro Moreira
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ALGUNS POEMAS DE A VIDA NATURAL:
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I. Aqui e agora a vida recomeça
das plantas, aves, nuvens cristalinas,
num presente que vejo e não alcanço,
que sinto e não entendo, presa a essa
forma de amar, que vai às fundas minas,
onde se é no tempo sem descanso,
e se tem, ouro vivo, em cada flanco,
o silêncio escorrendo como a neve,
que desfizesse a luz de alguma chama,
ou o ardor do que ama,
e por amor na mesma neve ferve.
Assim, se o que me é dado se me escapa,
ainda mais o real presente escapa.

O divino real, que é cada coisa
no seu lugar, que é sempre aqui e agora,
e inteiros solicita o corpo e a alma;
o divino imediato, em que repousa
tudo aquilo que vive e que tem forma,
ou não a tem, diluída na água clara
do disperso pelo ar, a imensa, calma
fonte que verteo nu. Olho-me longe
desse perfeito hoje, desse uno
presente, pelo muito
imaginar, andando terras, onde,
se se pode cair no inferno vivo,
se foge ao atual, divino vivo;
se foge à integração nesse absoluto,
que é a direta experiência do que existe,
para tão parcos olhos excessivo
clarão, sons inaudíveis, altos, bruscos
movimentos que escapam ao limite
do nosso entendimento possessivo.
Assim me perco, assim não divinizo
o que é substância em mim divinizável,
o de onde estou contemplo em desamparo
o êxtase puro, o vasto
império do que vive sob o grave
jubiloso silêncio que há em tudo,
ou se transforma em tudo nesse tudo.

II. Mais que estes leques
de plumas suaves
que agita um vento
que não se vê,
mas baila e canta,
sinto que a vida,

mais que esta terra
e que estas flores
variadas, limpas
e tênues, sinto,
mais que estes ares,
sinto que a vida,

a vida é,
corre nas veias
como nos rios,
na seiva bruta,
no bicho quente,
no miúdo peixe,

em qualquer alga
macia e fria,
e não separa
gente de bicho,
só unifica,
na indiferença

mesma que anima
o que se move
ou não se move.

A vida é,
como a medula
de qualquer planta,
como o silêncio
que há numa gema,
como o escorrer
de todo rio
é puro e certo
e instransponível.

Tudo independe
de mim, de ti,
do que é vontade
simples e humana,
e tudo é grande,
claro, perfeito.

Só me limita
a consciência
de ser quem sou,
de me saber
e me pensar
junto e diversa

de tudo isso
que apenas vive
na sua glória,
na sua grandeza
insconsciente
e harmoniosa.

XII. O meu amor, que livre anda de engano,
ambiente natural
encontra nestes campos, onde a relva,
levemente movida pela brisa,
ao contato é macia,
e o boi rumina, sem espanto, a sua
doçura de vagar,
olhos postos nas coisas, distraído;
um cavalo anda longe,
e a crina se desfralda como um leque,
aberto por um vento muito brando.

Meu amor se acomoda entre estas pedras
como a seu leito o rio,
a asa do inseto ao corpo delicado,
ao morno ventre o bicho não nascido.
Como fronde se inclina
aos meus suspiros, que deitando vou
aos transparentes ares,
quando o arvoredo a fina brisa agita.
Ah deleitosa vida,
pelo arado do sonho sou levada,
e o que fazes de mim é o que me fica.

Sem qualquer pensamento ou sentimento
que de leve me afaste,
mergulho na secura do que vejo.
Cada coisa está viva em seu lugar,
cada coisa está certa;
o Inverno seca apenas o exterior,
deixa a umidade interna.
Que sei de olmos e faias e olorosas
ervas? De mim que sei?
o ritmo do que vive é tão perfeito
como o do ar que entra e sai pelas narinas.

XIX. Aqui desta varanda
espaçosa que dá
sobre um jardim e sobre o imenso largo,
contemplo sossegada
o cair, sobre as coisas,
lento, do dia, o céu por todo lado.
Contraponho o silêncio
desta vida perfeita,
à vida que se vive
na cidade, em tumulto.
A minha pálpebra sustenta o peso
da tarde, que me fecha
num sonho, vagarosa.

Sonhamos o que vemos?
ou somos nós o sonho
daquilo que não vemos no que vemos?
A matéria das coisas
me desmaterializa
ao ponto de me ser inatingível
o sentido de estar,
o sentido de ser
distinto delas. Ah,
quem me é? quem me sabe,
sob este céu de estrelas quentes e úmidas?
Não vivo, sou vivida
na noite, pelas coisas.

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